Uma ideia que há muito se conjuga é a da transcendência humana face ao corpo, ao tempo, à finitude. Transcendência essa que já assumiu várias formas e formulações teóricas, mas que hoje existe sob a identidade de transhumanismo.
Termo avançado nos anos 50 do século XX pelo biólogo Julian Huxley – irmão do escritor de Admirável Mundo Novo – para definir uma ideologia que defende a melhoria constante do homem através da tecnologia e da ciência.
O transhumanismo e os seus seguidores pensam ser possível atingir um estádio de desenvolvimento humano – físico e mental – no qual poder-se-á almejar a superação de todas as nossas limitações físicas, intelectuais e psicológicas. Encontrar a simbiose total entre o orgânico e o cibernético é um das facetas desta ideologia, no caminho da abolição do envelhecimento e tendo a imortalidade por meta final.
Paul Root Wolpe, que trabalha na área da bioética defende a teoria das Três Ondas da Evolução, na qual afirma que a humanidade passou pela fase darwinista (de seleção natural) e pela fase da evolução, encontrando-se no início da terceira fase, que apelida de evolução pelo design. Neste espaço evolutivo no qual nos encontramos, a modificação do corpo humano é uma possibilidade através da manipulação genética e numa segunda fase já em marcha também, será possível a coexistência no corpo humano de material orgânico e material cibernético.
Esta simbiose máquina – homem e a evolução tecnológica de melhoria dos limites biológicos humanos é já observável quotidianamente nos aparelhos auditivos cocleares, na procriação medicamente assistida, passando pelas mais complexas operações cirúrgicas e pela recuperação biónica de membros amputados ou com anomalias.
O manifesto transhumanista é passível de ser compreendido e lido. A sua agenda está presente em “lobbies” governamentais, associativos e tecnológicos e existe na estruturação e estratégia das GAFAM. Um dos mais importantes departamentos transhumanistas actuais é a Calico, pertencente à Google e que desenvolve desde 2013 biotecnologia na área do envelhecimento e doenças associadas.
Michel Onfray profícuo pensador francês, a propósito do seu livro Théorie de la dictadure (Robert Laffond, 2019) – no qual faz uma análise sobre a questão estabelecendo um paralelo com a obra de George Orwell 1984 – afirma: “ A ideologia de género prepara o caminho do “transhumanismo”, o objetivo final do capitalismo.” Acrescentando ainda: “Entramos num novo tipo de sociedade totalitária que destrói a liberdade, abole a verdade e nega a natureza.”
Ainda não é possível antever que impacto terá esta ideologia na atual crise sanitária e na sua consequente crise económica, muito menos se dela restará algum traço após a pandemia. É no entanto observável que parece ter regressado a noção, muito pouco neo-liberal é certo e contrária ao transhumanismo, de que o corpo é social: podemos infectar e ser infectados uns pelos outros e que é biológico, sendo a mente e vontade humana subordináveis aos imperativos biológicos.
Transcrevo do livro Homo Deus de Yuval Noah Harari, exaustivo e abrangente levantamento do conhecimento científico, a sua análise sobre a não existência de livre arbítrio na cadeia das reacções humanas que ligam cérebro e corpo e que colocam na perspectiva certa, a centralidade do indivíduo: “O eu é uma narrativa imaginária, tal como as nações, os deuses, o dinheiro!”
Abordar o transhumanismo num texto sobre fotografia é pensar a evolução da significação do corpo e nesse sentido, o retrato é um género fotográfico a analisar.
David Bate no seu bê-á-bá chamado Photography the key concepts afirma: “ O retrato é mais do que uma imagem, é um local de trabalho: um evento semiótico de identidade social!“
Dessa forma o autor explicita que a importância deste género prende-se com a dualidade que encerra entre um signo que descreve e caracteriza um indivíduo, inscrevendo-o paralelamente numa identidade social e colectiva.
Ao longo destes 180 anos de caminhada, o retrato fotográfico foi adquirindo uma heterogeneidade de dimensões, nas suas diferentes interpretações do que nos é comum, o rosto. A dimensão científica nas suas diversas abordagens exactas e/ou humanas; a dimensão política, ferramenta de validação de uma estratégia governativa ou expressão ideológica individual e por último e sempre, a dimensão estética e artística.

A implementação da antropometria judicial criada por Alphonse Bertillon, em 1870 contribuiu para atribuir ao retrato fotográfico a função de ferramenta social e política.
Criminologista francês, fundador de um gabinete de identificação criminal a partir das noções de antropometria. Instrumento de seriação e identificação de criminosos com base na ideia de que algumas das feições humanas não mudam ao longo do tempo e que assente nessa identificação precisa, poder-se-ia chegar à detenção dos alegados criminosos.
A sua técnica (bertillonage) deu origem às práticas actuais de fotografia criminal mas também as de identificação fotográfica civis. Bertillon criou também a partir de compósitos fotográficos, padrões científicos de tipos físicos e que permitiriam, em teoria, identificar perfis de comportamento criminal.

Esta instrumentalização foi levada ao extremo pela experimentação de Francis Galton. Dedicava-se ao estudo da hereditariedade através de uma técnica utilizada à época em plantas e animais, denominada reprodução selectiva ou melhoramento genético. Dessa forma, conseguia que os melhores indivíduos da espécie fossem manipulados para que os seus genes se reproduzissem, enquanto outros eram evitados para que as suas linhagens não continuassem. Procurou a partir de compósitos fotográficos criar padrões “científicos” de tipos físicos, passíveis de serem usados como caracterizadores de determinados grupos sociais, étnicos e religiosos.
Francis Galton irá introduzir o termo Eugenia, uma prática de selecção artificial, conceito desenvolvido a partir da teoria de selecção natural de Charles Darwin seu primo, no sentido de uma melhoria da espécie humana.
Algumas políticas de controle de natalidade que foram aplicadas no início do século XX em Inglaterra, Estados Unidos e Índia, podem ser enquadráveis como eugenia, mas foi a sua aplicação durante a segunda guerra mundial pela Alemanha, que conduziu esta prática a ser banida de forma total e absoluta do contexto global das sociedades democráticas regidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Nos dois discursos, de Bertillon e Galton, o outro abandonou o seu papel de sujeito e tornou-se prova, documento, facto de uma narrativa política, ideológica e aparentemente científica.

A obra da artista Nancy Burson assenta na fotografia civil serial de identificação e nos compósitos fotográficos de Bertillon e Galton. Servindo-se dos mecanismos de tratamento digital, a artista tem desde os anos 80 do século XX, criado híbridos fotográficos e com eles tem desconstruído algumas mitificações em torno das diferenças étnicas. Numa linguagem visual que aborda as relações de poder, as convenções sociais e os estereótipos, mas sob um ponto de vista ainda humanista, ou seja global e pré-identitário.
Uma questão abordada pelo transhumanismo, é a melhoria dos limites físicos da humanidade, campo no qual a genética e a cirurgia plástica desempenham um papel crucial.

Prática conhecida por diversas civilizações pré-clássicas, a utilização e o desenvolvimento da cirurgia plástica têm como ponto de arranque na nossa era a primeira guerra mundial e os milhares de soldados com graves desfigurações faciais causadas pelas explosões e agravadas pelas severas condições de sobrevivência nas trincheiras. Um nome referenciado como essencial no desenvolvimento desta prática é o do neozelandês ao serviço do Exército inglês, Harold Gillies.
Nos últimos anos ganhou significativa expressão a cirurgia estética, que tem permitido a criação do que designarei novos híbridos humanos, que procuram afastar-se das formas físicas biologicamente naturais, na demanda de eus em comunhão com os seus egos.
Monstruous feminine @ Jessica Ledwich. 2013
Na obra Monstruous feminine, a artista australiana Jessica Ledwich desenvolve um conjunto de imagens que nos aproximam do universo da publicidade: luz clara e sem sombras, cores neutras e puras, poucos objectos para evitar a dispersão visual, o elemento humano ao mesmo tempo identificável mas não individualizável.
Este trabalho fotográfico, onde o retrato não assume um papel preponderante, tem por base o livro de Barbara Creed The Monstrous-Feminine : Film, Feminism, Psychoanalysis, que analisa à semelhança de outros manifestos feministas das últimas duas décadas, a forma como as questões de género enformam a ideologia pessoal feminina em torno da beleza, da perfeição física e dos papéis a desempenhar na vida.

O retrato da jovem afegã Bibi Aisha, realizado pela fotógrafa sul africana Jodi Bieber, pode desempenhar um papel importante na análise da evolução da noção do corpo e da sua representação visual.
Esta imagem simboliza toda a prática do retrato documental no âmbito do fotojornalismo e do retrato pictórico clássico.
O equilíbrio adequado entre os diversos agentes produtores da imagem é mantido: esta fotografia representa um diálogo e uma tomada de decisão conjunta entre fotógrafa e modelo (antes desta última iniciar o processo de recuperação cirúrgica). Não se trata duma imagem roubada por um fotojornalista de passagem por um campo de refugiados, contexto no qual as linhas de poder entre criador de imagem e sujeito estão completamente enviesadas.
Bibi Aisha, que tinha sido condenada por um tribunal talibã a ter as suas orelhas e nariz cortadas pelo seu marido e sogro pela fuga em contexto de violência doméstica, escolheu ser fotografada e escolheu a forma de ser fotografada.
Destapada, hirta, séria, a três quartos. O olhar directamente para a câmara. Para nós. Todas as características que nos habituamos a ver nos retratos em estúdio desde a fotografia vitoriana. Aisha queria ser retratada na sua própria narrativa de forma dignificada e não fragilizada enquanto personagem na narrativa de outro. Até porque o caminho da recuperação cirúrgica era longo e dispendioso e a circulação desta imagem deveria servir em primeiro lugar a pessoa fotografada.
Visualmente é uma homenagem à tradição da fotografia documental humanista, sendo o tributo à obra de retrato de Steve McCurry óbvio. Representa também em termos de iluminação e gama de contraste, um enraizamento com a tradição pictórica flamenga.
Historicamente antevisto pelo mito de Pigmalião e pelo cavaleiro mecânico de Leonardo da Vinci, narrado pela ficção científica de Isaac Asimov e cinematicamente animado pelas criaturas de Frankenstein ou de Maria em Metropolis, a tecnologia robótica materializa um rosto andróide.
E como irá a fotografia depois do mapeamento da face humana, cartografar os rostos que a ciência desenha? Como irá o retrato olhar esse novo outro, reflexo de um tempo que há-de ser?

O projeto Geminoid HI-1, do cientista japonês Hiroshi Ishiguro (laboratório ATR- Advanced Telecommunications Research Institute International) estabelece uma união entre a robótica e os estudos sobre a inteligência, o comportamento e em última análise a natureza humana, campo das ciências cognitivas.
Este cientista criou um conjunto de andróides, à sua imagem física e da sua filha, com os quais tem desenvolvido todo um painel de comportamentos e reacções. E se por um lado Geminoid HI é a concretização por reflexo da cartografia emocional humana, por outro lado é a materialização do sonho humano de traçado quase divino, da criação de um ser à sua imagem.
The Performers é uma campanha publicitária da Gucci de 2018. No que posso definir como um caminhar confuso entre consumo, entretenimento e informação. Construída em vários actos, cada um dedicado a uma pessoa, um performer, um símbolo do mundo. Do mundo Gucciável.
O acto em causa, é composto por uma reportagem publicitária que engloba imagens fotográficas, texto e narrativa audiovisual e é dedicado ao criador de Geminoid HI.
As imagens são ao mesmo tempo publicitárias, porque o produto está lá e o objectivo é comercial e documentais, porque representam a vida e o trabalho do cientista. Retratos contemporâneos, frontais na sua composição simétrica. O produto audiovisual é interessante, na edição, na justaposição do tempo, do som e da imagem. Visualmente apelativo e eticamente perturbador.
Uma marca de luxo em paralelo com uma revista – GQ – desenvolvem com o cientista Hiroshi Ishiguro um híbrido audiovisual que une informação, fotografia de moda, product placement, videoclip e documentário científico. A questão levanta-se: que tipo de troca financeira é estabelecida com o cientista para tornar viável este endorsement publicitário, para tornar possível que Hiroshi Ishiguro vista as roupas, os acessórios e funda o seu trabalho visionário, o seu quotidiano com o de uma marca de produtos de luxo?
Será esta produção simbólica do facto de que provavelmente as práticas transhumanistas de melhoramento humano irão estar acessíveis apenas a um pequeno conjunto de homens e mulheres, os tais 1% que detêm 80% da riqueza mundial?
E o consórcio global de vestuário, calçado e acessórios de luxo o que de facto afirma, no âmbito da ideologia transhumanista, quando anexa ao seu logo a frase: What does it mean to be human?
Que só os humanos poderão ser considerados, hum, humanos? Ou que os humanos são definidos por um conjunto de características emotivas e comportamentais, respostas essas que a partir do momento em que forem replicáveis no absoluto num andróide ele será, passível de ser considerado, humano?
E os humanos, até quando e de que forma continuarão a ser, hum, humanos?
Os conselhos mundiais de ética (em Portugal na figura do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida) discutem a regulamentação do que se denomina “edição do genoma humano”. Quando usada, a manipulação genética do genoma humano é aplicada in vivo em seres humanos na óptica de resolução de problemas graves, fins terapêuticos e nunca para melhorar ou aperfeiçoar. Sendo essa a aprendizagem obtida com as práticas de eugenia durante a segunda guerra mundial.

Em 2018, a fotógrafa norte-americana Maggie Steber realizou para a National Geographic e durante um período de dois anos uma reportagem sobre a jovem Katie Stubblefield. Em 2015, com 18 anos e no seguimento de uma tentativa de suicídio com uma arma de fogo, a jovem Katie danifica de forma irreparável o seu rosto. A partir daí estabelece-se um caminho pessoal, de cura, redenção e de incrível avanço científico e tecnológico que irão conduzir a esse primeiro implante total facial, o primeiro a ser realizado nos Estados Unidos.
As imagens que fazem a reportagem traçam esse caminho.
O rosto descreve-nos enquanto indivíduos, no diálogo que estabelecemos com cada outro e inscreve-nos enquanto identidades sociais e colectivas, independente da nossa vontade.
Atravessámos, enquanto sociedade e através das nossa práticas, dilemas éticos provocados por considerações erróneas que associaram determinados tipos físicos a determinados comportamentos criminais e que estigmatizaram e eliminaram comunidades étnicas pelas suas características físicas.
O rosto esse foi sendo regenerado pela ciência no âmbito de deformações genéticas, acidentes de vida e incidentes de guerra. Mas esse rosto tem vindo também a ser transformado pela vontade individual, tendo por base convenções de beleza, questionamentos internos e apontando como objectivo final, a felicidade do indivíduo.
O rosto completamente tecnológico, existe, caminha e reage. É retratado e cada vez mais se aproxima de ser ao mesmo tempo filho e gémeo do ser humano.

Esta imagem da História de um rosto é próxima, tal como o retrato de Bibi Aisha, da pintura flamenga feita de luz e sombra total. Imagens da Pietá ecoam também.
É uma representação visual feita dos laços que podem salvar-nos quando não sabemos o que devemos fazer e o que estamos cá para fazer. É uma imagem na tradição humanista, sem aparente luta de poder, dualidades simplificadas ou oposição identitária.
Uma mãe, um pai, uma filha. A vida. Um dia qualquer.
O transhumanismo parece ser um placebo tecnológico e ideológico, que pretende afastar o envelhecimento, a doença, a morte. E tal como a campanha publicitária penso: o que significa então ser (um) humano?
Por ora, a ideologia transhumanista não aponta ainda uma visão igualitária do mundo. Sonhos de eternidade, imortalidade e imunidade, projectados em circuito fechado.
Porto. Abril 2020.