Ara Güler, orgulhosamente turco, oriundo do seio de uma família que se encaixava na minoria arménia na Turquia, nasceu em Istambul em 1928. Há muito intitulado como “O Olho de Istambul”, Güler, foi certamente um dos maiores representantes da fotografia criativa na Turquia e um dos poucos que atingiu a fama global. O prémio de Fotógrafo do Século na Turquia, arrecadado em 1999, demonstra claramente a importância de Güler no quadro da fotografia turca do século passado.
Güler congelou a memória colectiva de um país com as suas imagens durante 68 anos. Uma carreira longa, cheia de marcos importantes e apenas ao alcance dos maiores nomes da fotografia.
O amplo círculo de conhecimentos e amizades do mundo das artes do seu pai – proprietário duma farmácia na animada Avenida İstiklal – inspirou Güler a abraçar uma carreira no cinema. Uma carreira que, felizmente para nós, rapidamente se orientou para outras formas de memorizar o tempo. Güler abandonou o cinema em favor do jornalismo, ingressando como repórter no jornal Yeni Istanbul em 1950. A sua primeira empreitada fotográfica foi a estátua de Atatürk em Gümüşsuyu, Beyoğlu, que tinha sido vandalizada por um grupo extremista.
Nessa altura recebeu de presente, do seu pai, a sua primeira câmera. “O meu pai deu-me uma câmara, e eu fui fotografar o mundo”, afirmou o próprio Güler numa entrevista interessantíssima cedida à jornalista Margarida Santos Lopes em fevereiro de 2013, posteriormente publicada na LER, a março desse mesmo ano.
Do Yeni Istanbul, em 1950, passou para o diário turco Hürriyet e de lá muito rapidamente para o mundo. Melhor dizendo, em 1958, quando a Time Life abriu uma delegação na Turquia, Güler tornou-se o seu primeiro correspondente para o Médio Oriente. Fez comissões para o The Sunday Times, para a Paris Match ou para a Stern, apenas para mencionar algumas publicações de renome. Por outras palavras, ele era o correspondente turco da comunidade fotográfica europeia e o reconhecimento do seu talento e olho fotográfico impressionou, não apenas o público e os editores, como alguns dos mais reputados fotógrafos desse período.
Güler teimava em dizer que não era um fotógrafo, que não era de todo um artista, mas sim um fotojornalista, coisas que para ele não partilhavam a mesma identidade. “Os fotojornalistas confundem-se habitualmente com fotógrafos. Não somos fotógrafos. Somos fotojornalistas”, afirmava o homem que, ainda em 1961, foi retratado como um dos sete melhores fotógrafos de mundo na Photography Annual Anthology publicada em Londres e que pode ser lido como referência honrosa na entrada dedicada a Güler, no Dicionário Histórico da Turquia (Heper, M., & Criss, N. B., 2009). Se este sentimento era inteiramente sincero nunca saberemos, o que sabemos é que não correspondia à realidade. Ara Güler foi, sem qualquer sombra de dúvida, um enorme artista.
Ainda em 1961 Güler conheceu Henri Cartier-Bresson e Marc Riboud que o convidaram para a Magnum Photos, à qual, muito naturalmente, se juntou. Também no mesmo ano, 1961, Ara Güler tornou-se o primeiro membro turco da Sociedade Americana de Fotógrafos de Revistas (ASMP).
Um ano depois, em 1962, recebeu o título de Master of Leica na Alemanha e participou numa edição especial da revista Swiss Camera, uma das principais publicações de fotografia do mundo nessa altura. Güler também fotografou as imagens do livro “Hagia Sophia” de Lord Kinross, publicado em 1971, e a foto da capa de “Picasso: Métamorphose et Unité”, publicada pela Skira Books para comemorar o 90º aniversário do mestre andaluz.
As ligações e relações que foi criando foram naturalmente importantes para que Güler viesse a visitar diversos territórios internacionais, segundo ele, todos menos o Polo Norte e o Polo Sul. Veio a conhecer, entrevistar e fotografar diversas figuras públicas proeminentes e artistas de alcance global, incluindo Winston Churchill, Indira Gandhi, Bertrand Russell, Arnold Toynbee, Alfred Hitchcock, Pablo Picasso, Salvador Dali, entre muitos outros.
Em 1972 teve uma exposição na Biblioteca Nacional de Paris e foi convidado para os Estados Unidos em 1975 onde realizou inúmeras fotografias de norte-americanos famosos. A sua exposição, Creative Americans, composta por fotografias realizadas durante essa viagem, esteve patente em grandes cidades um pouco por todo o mundo. No mesmo ano, filmou um documentário sobre o desmantelamento do navio de guerra Yavuz, intitulado “Kahramanın Sonu” (“O Fim do Herói”) e ganhou o primeiro prémio no ramo de fotojornalismo da Sociedade de Jornalistas Turcos.
Ainda assim, por maior que fosse a fama internacional e a projecção do seu trabalho no ocidente, não era por essas virtudes que a sua fama na Turquia crescia. Esta, decorria de outra faceta de seu trabalho.
As suas imagens da Turquia dos anos 50, especialmente as dos bairros antigos de Istambul, são fascinantes por fonte da sua atmosfera. Güler respirava e sentia profundamente a cidade e isso destilava-se muitíssimo bem na forma como retratava Istambul. Desde um antigo cemitério com crianças a brincar num túmulo, a velhinhas que rezavam na antiga mesquita de Edirne ante a vasta caligrafia de “Alá” numa das paredes, as suas fotografias estavam destinadas a perdurar décadas por aquilo que cada uma delas implicava, pela força com que cada uma delas inspirou cada turco. A sua fotografia dos três homens, velhos, que conversavam em pequenas cadeiras junto a uma parede de um antigo café, tornou-se um dos emblemas da nostalgia da velha Istambul.
Embora cristão ortodoxo, Güler foi um dos melhores fotógrafos da arquitetura islâmica da Turquia. Ele não expôs as grandes mesquitas como lugares escultóricos, inertes, mas como monumentos religiosos carregados da vida quotidiana e com a energia vital das pessoas, especiais na sua autenticidade, em seu redor. A trivialidade, com Güler, alcançou sempre uma posição de distinção.
Claro que nem todas as obras de Ara Güler são tão profundas quanto as mencionadas anteriormente. No entanto, Güler usou a sua câmera como colecionador e testemunha de momentos autênticos, tanto os das figuras públicas importantes como os das pessoas comuns. A sua visão era, não uma excitação histórica, mas quase sempre, um documento nostálgico.
Em 2002, foi premiado com a Légion d’Honneur, medalha e título Officier des Arts et des Lettres pelo Governo Francês e em 2009 a Médaille de la Ville de Paris pelo município de Paris.
Güler recebeu o Grande Prêmio de Presidência da Cultura e Artes da República da Turquia em 2005, o Prémio de Serviços de Cultura e Artes do Ministério da Cultura e Turismo da República da Turquia em 2008, Prémio de Serviço Superior da Grande Assembleia Nacional da Turquia em 2009, US Lucie Awards Lifetime Achievement Award em 2009 e o Grande Prémio do Ministério da Cultura e Turismo da República da Turquia em 2011.
Morreu com 90 anos, em 2018, e com um volume de imagens que se estima estar perto dos dois milhões de negativos e slides – alguns dizem mesmo que só de Istambul existe esse número – arquivados nos 3 andares do edifício onde está o Kafe Ara, local que em tempos foi ocupado pela farmácia do seu pai. Ara Güler foi uma figura imensamente acarinhada pelos turcos, sobretudo os de Istambul, que o fotógrafo imortalizou com as suas imagens.
Hoje, recordamos Ara Güler no EFE.

Ao longos dos últimos 10 anos dediquei praticamente todos os momentos livres à fotografia que, por imposição de valores mais altos, não possuo como educação formal. Químico por (de)formação, tento partilhar um pouco mais desta paixão aceitando o convite de escrever uns rabiscos aqui no EFE.