A construção e o sucesso duma mentira não necessitam de muitas coisas.
Por norma, e para começar, necessitam de um pouco de um pouco de verdade. A verosimilhança de uma peta é muito importante, mesmo que seja mínima.
Pode-se começar por algo real, aparar-lhe alguns pormenores, e acrescentar depois uma dose de ficção.
A ficção deve ser boa. Deve acrescentar-se algo que entusiasme e que faça que com que o alvo da mentira queira acreditar.
As pessoas gostam de acreditar em boas histórias.
Isto é válido para grandes embustes e fraudes, e é válido para para pequenas tretas.
Por vezes, a estranheza da história ressoa, e a informação que a desmente até é acessível e clara. Mas, perante o pequeno trabalho de questionar, o deleite de uma boa fantasia leva clara vantagem.
O mundo da internet é um amplificador desta facilidade da mentira. Permite o acesso fácil a muita verdade — matéria-prima a trabalhar. E, uma vez acrescentadas as camadas de falsidade e omissão, facilita tremendamente a sua divulgação.
Funciona igualmente como uma câmara de ecos. A mentira na internet, tem vida própria. Os algoritmos das redes sociais facilitam não só a sua chegada a públicos particularmente interessados em acreditar em boas falsas histórias, como a fornecem a novos criadores de petas que a manipulam e moldam para o seu próprio público. A mentira evolui e adapta-se a novos ambientes.
A fotografia tende a ser um dos mecanismos mais usados de validação da falsidade e, dada a tendência ingénua de associar a fotografia à verdade, tende a ser um dos mais eficazes.
Por vezes, a imagem é adulterada, manipulada, cortada. Mas, frequentemente, apenas é alterada, ou criada, a legenda. E por vezes, muitas vezes, combinam-se ambos os mecanismos.
Repetindo, isto é válido para grandes conspirações e golpes, e é válido para as farsolas insignificantes.
Tem circulado pelas redes sociais (sobretudo no facebook, no pinterest e no twitter) esta fantástica fotografia de “Praia do ano 1900 em Albufeira Algarve”:
Mas, na verdade, trata-se de “Costa da Caparica, circa 1910″.
Ou tratar-se-á antes da “Figueira da Foz de antigamente”?
Ou ainda da “Praia de Cassino”, no Rio Grande do Sul, Brasil?
Na realidade, nenhuma das anteriores. A roupa e os hábitos parecem demonstrar que se trata duma praia americana. “A Saturday at the beach. Early 20’s, Galveston, Texas”; esclarece-nos outra fonte.
Fonte falsa, para não variar.
A imagem em questão não nos apresenta a totalidade do que originalmente foi capturado pelo fotógrafo. Consegue-se, com alguma facilidade, descobrir a fotografia que provavelmente está na origem desta espantosa epidemia de localizações. Esta apresenta-nos a localização real ( Daytona, Flórida, Estados Unidos) e uma panorâmica mais alargada do espaço. Foi partilhada no popular site Shorpy, um espaço dedicado à veneração de fotografias antigas, e foi-o carregando no canto inferior direito uma irritante marca-de-água.
Terá sido a partir de aqui que um primeiro recriador de conteúdos cortou a parte da imagem que continha o , repetimos, irritante selo do Shorpy e toda a secção esquerda da fotografia, onde havia alguma informação visual específica do local, criando assim um arquétipo fotográfico duma praia no início do século vinte.
Mas, na realidade, a construção da nossa imagem falsa de Albufeira começou antes.
O próprio Shorpy terá manipulado a imagem para a adequar mais ao gosto do seu público. Sabemo-lo porque o site indica que se trata duma imagem da Detroit Publishing Co., uma extinta agência fotográfica americana, cujos arquivos se encontram ao cuidado da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. E a imagem original, não só é de domínio público (o que torna ainda mais irritante a marca-de-água do Shorpy), como é disponibilizada pela instituição num ficheiro digital de alta resolução.

E houve também, claro, a introdução da (nunca é demais, dizê-lo) irritante marca-de-água.
Esta primeira manipulação, eventualmente bem intencionada, poderá ter sido o ponto de partida duma pequena mentira viral e mutante. A imagem original com legenda, da biblioteca do congresso dos Estados Unidos, sendo obtida a partir dum formulário duma base de dados, não aparece facilmente em pesquisas de imagens na internet.
A certa altura alguém terá achado a oportunidade boa demais para não ser aproveitada. O enquadramento restrito permitia a associação ingénua a qualquer praia ocidental no início do século vinte. Tendo começado possivelmente pelos Estados Unidos, a coisa terá depois seguido pelo Brasil, Portugal e restante mundo.
Expor uma mentira dá uma boa história. Mas será esta história verdadeira ? O melhor é investigar…
Texto e selecção de imagem: Não me mexam nos JPEGs / Júlio Assis Ribeiro