Há oitenta anos e uns dias, numa Europa em guerra, deu-se um importante acontecimento. O rápido avanço das tropas nazis cercou o contingente expedicionário britânico, e boa parte das tropas locais, no litoral do Norte de França.
Incapazes de reagir, de retomar a iniciativa, com tropas exaustas e sem meios, os britânicos decidiram-se pela retirada. Uma retirada improvisada, atabalhoada, em que tudo serviu para retirar gente da ratoeira que a região de Dunquerque se tornara. Mas, apesar de tudo, uma retirada feita com estoicismo, em que se lutou para não deixar ninguém para trás (ninguém que se conseguisse deslocar para as praias). Retirados os britânicos, foram também transportados os seus aliados: franceses, belgas, holandeses e até polacos.
O sucesso da retirada serviu para algo estranho, mas não inusitado. Converter uma tremenda derrota numa vitória. As guerras reais travam-se não apenas nos campos de batalha, mas também ao nível dos significados.
O ter sido capaz de retirar milhares de homens acossados em poucos quilómetros de praia, em poucos dias, recorrendo a qualquer coisa que flutuasse, de navios mercantes a iates de recreio, de barcos de pesca a couraçados, serviu para o comando britânico apresentar ali a marca da sua vitória. Dunquerque seria a prova do carácter e resolução britânicos.
E porque as imagens não são neutras, também elas foram convocadas para esta alquimia de transmutação de derrotas em vitórias.
Fotografias feitas pelos militares britânicos, sobretudo, ajudaram à criação da imagem do milagre de Dunquerque, e o substrato de muitas cenas de cinema, das quais as de “Dunkirk”, o relativamente recente filme de Christopher Nolan, serão possivelmente um dos exemplos com maior pendor realista.
Mas as guerras têm dois lados (pelo menos). Uns dias depois, pelas praias da região de Dunquerque andou um alemão, Hugo Jaeger, que também fotografou a sua versão dos acontecimentos.

Dunquerque após a retirada britânica,
França, Junho de 1940
A praia registada por Jaeger não é a praia dos heróis, dos que resistiram e dos que os vieram buscar, é a praia da derrota. Uma praia de veraneantes devolvida à “normalidade” pelas forças alemãs (vejam a senhora, que placidamente se senta na areia), e em que são ainda visíveis os traços de um fuga improvisada. É um território pleno de despojos, de material deixado para trás. Uma praia vasculhada por cães, iconografia macabra dos derrotados em campos de batalha.

Dunquerque após a retirada britânica (pormenor),
França, Junho de 1940
Hugo Jaeger, como fotógrafo, só terá possivelmente duas coisas de destaque. A primeira, mais benigna, era o facto de trabalhar com fotografia a cores, numa altura em que tal era raro. A outra era a sua filiação nazi e a proximidade a Hitler, tendo sido um dos poucos que tiveram a oportunidade de retratar a intimidade do ditador.
Hoje, a narrativa sobre Dunquerque que vingou é a do momento heróico, uma antecâmara da vitória futura de 1945. Mas olhando para a praia de Jaeger podemos perceber que não era uma narrativa única. Existia o seu inverso, uma praia sem alquimias, sem redenções para um notório falhanço militar.
Texto e selecção de imagem: Não me mexam nos JPEGs / Júlio Assis Ribeiro