Joshua Benoliel é a melhor fonte de documentação fotográfica do Portugal conturbado das primeiras décadas do século XX. Registou momentos das revoluções, golpes e contragolpes que se sucederam nesse período. Fotografou as gentes no seu desenrolar e, sobretudo, no rescaldo desses grandes momentos. E de outros também significativos, de greve, comemorações e de protestos.
E registou igualmente o (aparentemente) anedótico conflito que se gerou em torno das “Chinesas milagrosas” ou “Chinesas dos bichos”.
Em Novembro de 1911, pouco mais de um ano após a implantação da República, uns meros meses após a aprovação da primeira constitução republicana, e enquanto a norte se vivia um jogo de toca-e-foge com as hostes monárquicas de Paiva Couceiro, instalaram-se no Hotel Algarve, na baixa da capital portuguesa, duas curandeiras chinesas, provenientes de Xangai.
As referidas senhoras, de nome Ajus e Joé, informa-nos a Illustração Portugueza de 4 de Dezembro de 1911, rapidamente ganhariam fama e apoio popular pela sua alegada capacidade de curar problemas oftalmológicos através da aplicação de curativos e de massagens que culminavam na extração dos bichos causadores das afecções oculares. Estes, vir-se-ia a comprovar, não eram mais que larvas de mosca criadas pelas próprias.
Porém, o seu propalado sucesso gerou enorme afluência às ruas envolventes do hotel, e verificar-se-ia mesmo algum tumulto por parte dos populares que tentavam aceder às “consultas”.
O Governador Civil de Lisboa, Eusébio Leão, médico de profissão, decidiu intervir e pôr cobro à charlatanice. Entendendo que eram a ignorância e o desespero o que levava tantos doentes a procurar as curandeiras, decidiu “defendê-los mesmo contra eles próprios” e fez parar a prática destas.
Esta actuação gerou um enorme movimento de protesto. Criaram-se comissões populares para interpelação do parlamento, Governo Civil, Ministério do Interior e até do presidente da República, em defesa de Ajus e Joé. Não obtendo grande resposta, a contestação popular continuou com ajuntamentos nas imediações do hotel .
A 25 de Novembro, as autoridades entram no hotel Algarve e encaminham as duas curandeiras para um comboio que as retirará para Espanha, numa expulsão expedita do território português.
No dia seguinte, a indignação aumentou grandemente de tom, invocando-se abuso da autoridade republicana e ilegalidade nos procedimentos contra as estrangeiras, e gerou-se um comício de protesto junto à à Igreja dos Anjos, que percorrerá lisboa, com várias deambulações, até chegar no Rossio, onde uma tentativa de intervenção de Machado Santos, a grande figura da implantação da República, terminará em perseguição e no cerco e destruição da loja onde Machado Santos se refugiou.
Uma intervenção de marinheiros e da cavalaria da Guarda Nacional Republicana consegue resgatar Machado Santos, mas os tumultos continuam até que, por fim, junto ao café A Brazileira, se dá uma intensa troca de tiros que causará perto de cinquenta feridos e um morto.
Com isso, terminará o estranho episódio das “Chinesas Milagrosas”, a primeira grande conturbação urbana da Primeira República . Um acontecimento caricato à primeira vista, mas no qual uma análise mais profunda consegue detectar sinais de uma insatisfação “subterrânea”, que irá aflorar com muito maior pungência em momentos posteriores.
A elite republicana via-se como sendo agente duma modernização necessária da sociedade portuguesa. Um movimento que teria de se realizar, à força se necessário, imposto num povo pouco escolarizado e do qual essa mesma elite desconfiava, considerando-o pouco capaz e manipulável.
A retórica anti-republicana que aflorou a espaços nos discursos dos protestos da “chinesas dos bichos” não desmente a possibilidade de manipulação temida por muitos dirigentes republicanos. A actuação das autoridades, com motivos legítimos (embora com alguns atalhos legais), foi transformada num abuso destinado a favorecer os privilégios dos médicos, alegadamente apenas interessados em dinheiro e não em resultados, promovido por um deles, Éusébio Leão, republicano indefectível.
Mas mesmo na primeira página do jornal de tendência republicana A capital, do dia seguinte, aparece a crítica de que o grande potenciador do grau dos tumultos foi a atitude superior e dogmática das autoridades, e o recurso inicial a violência policial desnecessária. Perante uma população gravemente necessitada de cuidados médicos, presa a uma vida de grandes dificuldades, não terá havido a necessária abordagem pedagógica, observa-se. A intervenção de Machado Santos viria demasiado tarde, com os ânimos já exaltados, e acabaria não só por falhar nos intuitos de acalmar e explicar, como seria mesmo o rastilho que alimentaria o fim trágico dos protestos.
Apesar destas críticas, a postura dogmática e de modernização forçada continuaria a ser a abordagem prevalecente nos anos seguintes. E a oposição conservadora e tradicionalista acabaria por tirar dela uma boa vantagem.

O povo protestando contra a expulsão das chinesas milagrosas, Lisboa, Portugal, 1911
[ Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa ]
Texto e selecção de imagem: Não me mexam nos JPEGs / Júlio Assis Ribeiro